sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Quem é pior: políticos ladrões ou seus eleitores ?


Os cientistas políticos e a pseudo classe média diz que os pobres votam mal porque são ignorantes e indiferentes com a realidade política do Brasil, porém, se esquecem de analisar o seguinte:

Se vota bem semelhante como se compra um produto.

Por exemplo:

Um comerciante precisa de comprar um produto, e este produto tem inumeros vendedores que diariamente batem á sua porta. De quem este comerciante irá comprar o produto, já que a qualidade e preços são equipar[aveis ?

Resposta: Daquele vendedor que ele mais tiver afinidade, que mais se identificar!

Com o voto acontece o mesmo, pois os eleitores não votam num candidato por causa de seus proposição ou de seu passado, mas sim POR IDENTIFICAÇÃO, e.... brasileiro se identifica com que tipo de pessoas ?????

Ja ouvi muita gente falar que se estivesse no lugar dos políticos ROUBARIAM de montão ... afinal, são espertos e não vão dar mole pro azar .... de ter a chance de sua vida e desperdiçar por causa dessa bobagem chamada ÉTICA!

Os eleitores dos políticos pilantras, são tão, ou mais pilantras que os mesmos, e votam por identificação, se projetam no picareta e se realizam na roubalheira que este promove quando chega lá no poder.

Afinal, verifico que a classe média critica os pobres, acusando-os de serem os responsaveis pela manutenção dos politicos pilantras no poder, mas ... alguém aqui já teve notícia de alguma mobilização de protesto contra a corrupção movida pela pseudo classe média tupiniquim ????

Talvez, essa pseudo classe média anseie mesmo é por um lugar ao sol ao lado desta corja de ladrões que infestam as esferas de poder no Brasil.

Uma verdade psicológica: NUNCA LUTAREMOS CONTRA AQUILOS QUE NO FUNDO ADMIRAMOS !!

terça-feira, 2 de agosto de 2011

O BOM CIDADÃO NO REGIME REPUBLICANO

(Maquiavel: Educação e Cidadania, Ed. Vozes, 2002, 83-89)




Ao contrário do que ocorre no principado, a educação para a cidadania no interior do regime republicano implica em levar o indivíduo a afeiçoar-se mais às leis e instituições do que à pessoa dos governantes e autoridades.

O povo julga pelas aparências, deixando-se enganar por elas. Enquanto no principado esse fato não produz perturbação, visto que a tomada de decisões permanece monopólio do príncipe, na república, ao contrário, representa problema político da maior gravidade. Na perspectiva maquiaveliana, a república caracteriza-se por ser um regime político em que a guarda da liberdade deve ser confiada à maioria, isto é, ao povo, a quem compete inclusive a distribuição de cargos e dignidades. Na república o povo escolhe, tem poder de decisão, mas ele pode ser facilmente enganado e provocar a ruína do Estado: "muitas vezes o povo, enganado por uma falsa imagem do bem, deseja sua ruína" (Machiavelli, 1992 - Discorsi, I, 53: 134).

... (A) manutenção da liberdade através das instituições republicanas deve ser confiada à coletividade dos cidadãos e, de modo muito especial, aos excelentes, aqueles que possuem qualidades e virtù para agir visando o bem comum. O cidadão que assim se comporta fatalmente torna-se alvo do reconhecimento popular, conquistando fama, reputação e glória. A reputação oriunda do "favor popular", por sua vez, redunda em autoridade e pode conduzir à ambição política, uma vez que o desejo de poder, natural em todos os homens, faz-se particularmente presente nos indivíduos de mérito que, além de ambicioná-lo, têm condições e oportunidade para alcançá-lo.



Portanto, é justamente pelas mãos daqueles com quem a república mais precisa contar na salvaguarda da liberdade - os cidadãos virtuosos que a tirania pode instalar-se. Maquiavel explícita com todas as letras esse dilema: "sem cidadãos reputados uma república não pode existir, nem governar-se bem de algum modo. Por outro lado, a reputação dos cidadãos é causa da tirania nas repúblicas" (1992 - Discorsi, III, 28: 235). A boa reputação contém um potencial tirânico, contra o qual é necessário precaver-se.

A ambição pessoal por glórias e riquezas pode entrar em rota de colisão com o bem comum, mesmo num regime politicamente sadio. Das duas finalidades que a ambição humana persegue com maior afinco - riquezas e honrarias - Maquiavel reputa a primeira incompatível com o governo republicano, uma vez que ela contém a semente da corrupção. Para que a riqueza sem virtudes não possa corromper (cf. 1992 - Discorsi, III, 16: 222), a pobreza se vê elevada à dignidade de princípio político: "a república bem organizada deve manter o Estado (i] publico) rico e os cidadãos pobres" (ibidem, I, 37: 119).

Existe, entretanto, flagrante contradição entre o preceito republicano de manter os cidadãos na pobreza e a natureza ambiciosa dos homens em geral. Maquiavel sabe que não pode contar com uma atitude altruísta por parte dos cidadãos, ou supor que abririam mão de interesses particulares em nome do bem coletivo, o que seria, inclusive, contraditório com sua concepção da natureza humana. Resta uma alternativa: que a ambição por riquezas seja substituída por outro tipo de satisfação ou recompensa pessoal - honra e glória - que também fazem parte dos apetites humanos. No plano individual, a glória representava uma das mais altas aspirações do homem renascentista. Todavia, enquanto os escritores humanistas concebiam a glória e a fama sob um prisma eminentemente individual, ligado à preocupação do indivíduo em perpetuar seu nome no mundo, Maquiavel apropria-se desses valores humanistas para instrumentalizá-los em vista de um projeto político coletivo.
Além de corresponder à realização de uma aspiração individual, a glória pode, simultaneamente, harmonizar-se com o bem comum, ao contrário da riqueza.

Maquiavel reconhece como legítima a aspiração à reputação pessoal: o perigo está em sobrepô-la ao bem coletivo. Promove-se, por assim dizer, um redirecionamento da ambição humana, canalizada para uma forma de satisfação compatível com o vivere civile. Além dos meios coercivos destinados a controlar a natureza maligna do homem - basicamente as armas e a lei -nas repúblicas a glória representa uma alternativa positiva à sua insatisfação inata. Ainda assim, permanece a necessidade de encontrar formas de harmonizar a aspiração pessoal à glória, enquanto exaltação de si mesmo, com a realização do bem comum.

Para satisfazer a legítima aspiração do cidadão à reputação pessoal sem danos ao bem comum, torna-se necessário considerar os meios empregados para conquistá-la, que, segundo o autor, são fundamentalmente dois: um público, outro privado. "O modo público é quando alguém adquire reputação aconselhando bem e, melhor ainda, agindo em benefício comum" (1992 - Discorsi, III, 28: 235). Por esta via, o indivíduo procura ganhar destaque através de ações extraordinárias, gestos e atos inusitados e espetaculares que, simultaneamente, visem o bem comum, a exemplo dos romanos nos tempos áureos da república: "Assim agiram muitos romanos, ainda jovens, propondo que se promulgasse uma lei benéfica a todos, acusando algum cidadão poderoso como transgressor das leis ou fazendo outras coisas semelhantes, novas e notáveis, que dessem o que falar." (1bidem, III, 34: 242).

Este caminho para a fama deve estar aberto a todos os cidadãos, que através dele podem satisfazer sua ambição pessoal e, simultaneamente, beneficiar sua pátria; embora a honra e glória que disso resulta selam apropriadas individualmente, quando obtidas por essa via não trazem nenhuma ameaça.

A via privada, ao contrário, consiste na aquisição da boa reputação através de ações individuais, cujos beneficiários são também cidadãos particulares, visando, em última instância, com base no poder de influência acumulado, alcançar fins privados.

A via privada consiste em fazer benefícios a outros cidadãos privados, emprestando-lhes dinheiro, apadrinhando-lhes o matrimônio dos filhos, defendendo-os dos magistrados e fazendo-lhes favores particulares semelhantes, os quais transformam os homens em partidários (partigiani) e dão ânimo - a quem é tão estimado - para corromper as instituições públicas e violar a lei" (1992 - Discorsi, 111, 28: 235).

Sobre a reputação obtida por via privada o julgamento de Maquiavel é radical e categórico: ela é perigosa e nociva, Um só ato dessa natureza que se deixe impune pode arruinar a república; por isso aprova o procedimento que os romanos adotaram com relação a Spúrio Mélio, um rico cidadão.

Numa ocasião em que houve fome em Roma e as provisões públicas eram insuficientes para sanar o problema, Spúrio Mélio resolveu distribuir ao povo suas reservas privadas de cereais. Com esse ato de liberalidade conquistou de tal modo o favor popular que o Senado, pensando nos inconvenientes que poderiam nascer disso, nomeou contra Spúrio um ditador, que o fez executar (cf. Machiavelli, 1992 - Discorsi, III, 28: 234).

A respeito desse episódio Maquiavel comenta: "deve-se notar como muitas vezes as obras que parecem boas (pie) e que não se podem sensata mente (ragionevolmente) condenar, tornam-se cruéis e perigosíssimas para uma república quando não são corrigidas a tempo" (Ibidem). A distinção maquiaveliana entre virtude moral e virtù republicana fica evidente nessa passagem do texto: um ato moralmente bom em si mesmo pode não ser compatível com o bem comum.

O perigo da via privada para a obtenção da boa reputação reside no fato de que ela pode arruinar a liberdade republicana pela instituição de um poder tirânico. Nos Discorsi manifesta-se, ao longo de toda a obra, a preocupação de exorcizar o fantasma da tirania, estabelecendo salvaguardas para a liberdade, fundamento do Estado voltado para o bem comum. Mesmo no melhor regime político - a república - a malignidade humana jamais é erradicada e a ambição privada sempre pode sobrepor-se ao bem público. O preço da liberdade é a constante vigilância, particularmente sobre os indivíduos que adquirem fama e reputação e por isso podem galgar cargos e magistraturas, para que "não possam fazer o mal à sombra do bem, de modo que só tenham a reputação que beneficia a liberdade, não aquela que a prejudica" (1992 - Discorsi, I, 46: 129).

Uma das formas de vigiar a liberdade, para que esta não sucumba à tirania, consiste em adotar uma conduta política baseada na severidade e no rigor. O dilema crueldade/piedade, já abordado em O Príncipe, reaparece formulado em termos republicanos: "Se a clemência (l'ossequio) é mais necessária do que o rigor (la pena) para governar a multidão" (1992 - Discorsi, III, 19: 225).

Depois de tecer longas considerações baseadas nos exemplos dos capitães romanos, Maquiavel conclui que, numa república, é mais louvável e menos perigoso adotar uma conduta mais rígida e severa, pois nesse procedimento tudo se dá em favor do público, em nada favorecendo à ambição privada; porque desse modo não se pode conquistar partidários (partigiani), isto é, mostrando-se sempre áspero com cada um, e amando só o bem comum; quem assim age não conquista amigos particulares (particolari amici), aos quais, mais acima, chamamos de partidários (partigiani) (Ibidem, III, 29: 229).

Nos regimes republicanos, o vínculo do cidadão com o Estado deve estabelecer-se fundamentalmente pelas vias institucionais; a criação de laços pessoais cria partidários, ou seja, promove a particularização do que é publico, principio elementar de toda tirania, e, portanto, ameaça à liberdade; o cidadão ambicioso pode aproveitar-se da reputação adquirida para usurpar o poder e instituir uma tirania.

Como a bondade, humanidade, piedade, clemência e outras qualidades análogas se prestam ao estabelecimento de vínculos de afeição pessoal, os comportamentos que se pautam por elas devem ser vigiados e postos sob suspeita, a exemplo do caso de Spúrio Mélio. Ao contrário do que ocorre no principado, a educação para a cidadania no interior do regime republicano implica em levar o indivíduo a afeiçoar-se mais às leis e instituições do que à pessoa dos governantes e autoridades.

(O sublinhado não está no texto original - tem o objetivo de destacar o que se considera mais importante)

Lula reaviva sebastianismo, diz sociólogo - Entrevista com o sociólogo José de Souza Martins
(José de Souza Martins, 64, professor do Departamento de Sociologia da USP)
(Folha de São Paulo, 03/11/2002)

Folha - Lula se referiu aos pobres como "nossos filhos" e se apresentou à população como o primeiro "presidente companheiro" do país. Isso configura uma tendência populista do presidente eleito?
José de Souza Martins - Lula é um político intensamente interativo, diferente do PT corporativo que o apresentou como candidato, muito refratário às expectativas populistas de uma boa parcela do eleitorado. Por isso, Lula aceitou bem o roteiro de conduta populista que estava diluído nas expectativas do eleitorado, roteiro que ele consegue identificar e interpretar. Mas, muito depressa, terá que conhecer e reconhecer a liturgia própria do cargo e com ela identificar-se. Não há "presidente companheiro" nem pode haver, pois o único companheiro do presidente é o poder.
Folha - É possível identificar tendências messiânicas na expectativa popular em torno do governo Lula? O presidente eleito tem alimentado voluntariamente isso?
Martins - Somos um país messiânico e milenarista ainda hoje. A candidatura de Lula foi gestada muito antes de ele saber que era o escolhido e sem que se soubesse que seria ele o eleito dos filhos da promessa. Tem, portanto, uma origem messiânica. Tudo começa com a designação de dom Jorge Marcos de Oliveira, bispo de Santo André. Ele era um homem extraordinário, uma das primeiras figuras verdadeiramente progressistas da Igreja Católica no Brasil. Dom Jorge foi para o ABC para estabelecer ali a presença política da Igreja Católica entre os operários, numa região dominada pelos comunistas. Aproximou-se deles, foi para a porta das fábricas, apoiou e liderou greves e começou a estimular o aparecimento de uma liderança sindical de esquerda, mas não comunista. Foi nesse quadro de uma esquerda alternativa que se preparou o cenário para o aparecimento de uma liderança operária, de algum modo católica, que fosse além do discurso sindical e se transformasse numa liderança política. A rede política das Comunidades Eclesiais de Base, com a criação do PT, foi fundamental para fazer do nome de Lula um nome nacional, de esquerda, mas abençoado pela Igreja. É inestimável essa ação da Igreja para diversificar as esquerdas e, num certo sentido, democratizá-las. Os trabalhadores católicos tiveram assim a oportunidade de se expressar e se organizar politicamente, como agrupamento de esquerda, sem se sentirem numa relação de traição com sua classe social, que era o que acontecia antes, confinados em aparelhos políticos clericais e reacionários. Foi a Igreja, e não as esquerdas, que criou a figura poderosamente simbólica que, na pessoa de Lula, cumpre a promessa do advento do ungido. Na verdade, um reavivamento do sebastianismo, a espera messiânica no retorno do rei d. Sebastião para libertar o reino. As três derrotas eleitorais de Lula para a Presidência não foram compreendidas nem aceitas por esse eleitorado fortemente impregnado de sebastianismo. A perda da eleição para Fernando Henrique, em 1994, foi insuportável e mais insuportável em 1998. Se Fernando Henrique era um homem de esquerda, como podia disputar a eleição com o ungido de Deus e derrotá-lo? Daí um extenso e complicado processo de satanização do presidente, que vem até hoje, baseado em afirmações esdrúxulas a respeito de ter abandonado suas posições de origem, quase um traidor da causa, um usurpador. Um frade, que tem grande responsabilidade na unção de Lula, desde os primeiros dias da eleição de Fernando Henrique encerrava suas mensagens eletrônicas com esta palavra de ordem: "Fora FHC!". Já nas vésperas destas eleições, comecei a observar novas evidências de uma crença messiânica em torno de Lula: pessoas querendo tocá-lo. Mais recentemente, o episódio da visita ao menino Bruno, imobilizado numa cadeira de rodas por uma bala perdida, também vai nessa direção. Menos por uma explícita crença religiosa e mais pela concepção implícita de que Lula é o presidente dos desvalidos, dos injustiçados, dos fisicamente impossibilitados de ser eles próprios. Tudo isso é núcleo de uma crença messiânica. Esse fenômeno traz à mente os reis taumaturgos, da Idade Média, cuja legitimidade estava na capacidade de operar milagres, bastando tocá-los. Só o ungido podia curar, ou redimir os pobres. O substrato medieval do nosso catolicismo popular subsiste e é muito forte. E a ação das igrejas no sentido de construir essa imagem de Lula é mais do que evidente. O aparente populismo de Lula está mobilizando valores e concepções de um passado remoto, mas reconhecidamente persistente. Nossos arcaísmos estão procurando se cristalizar em torno dele, do mesmo modo que nossas frágeis e fragmentárias tradições de esquerda. Uma combinação impossível. Aparentemente, Lula não contribui conscientemente para alimentar essa rede de crenças arcaicas, mas isso, evidentemente, não depende dele.
Folha - O PT tradicionalmente se pautou pela recusa do figurino getulista do "pai dos pobres". Essa diferença pode estar se diluindo?
Martins - A recusa do getulismo pelo PT é mais dos dirigentes e do ideário do partido do que do seu eleitorado. Chega ao PT através dos intelectuais que um dia foram ligados à UDN, que, no fim de sua história, era um partido de direita. A popularidade original de Lula se deu no ABC, de muitos modos uma região fortemente getulista até hoje. Nessa cultura Lula foi gestado e aprendeu a fazer política. Lula representa o renascimento de muitas proposições do getulismo, especialmente no seu antagonismo ao PSDB e ao presidente Fernando Henrique Cardoso, que se propôs a encerrar a era Vargas. De certo modo, Lula conseguiu se tornar herdeiro dos órfãos de Vargas, que são muitos, por exemplo num certo nacionalismo econômico, bastante parecido com o do antigo presidente.
Folha - O simbolismo em torno de Lula é uma "compensação" sociopsicológica ao estilo de FHC?
Martins - Fernando Henrique tem procurado presidir a República como um magistrado, em face dos ministros que representam o pacto político que o tem sustentado. Portanto, as funções de visibilidade foram transferidas para os ministros. O presidente da República, com Fernando Henrique, recolheu-se à solidão do poder. Foi uma tentativa de modernizar profundamente a função presidencial, torná-la expressão de um modo moderno de exercício do poder, um sinal de opção e respeito pelos direitos do cidadão. Cidadão que deveria se expressar politicamente em função de seus direitos e não em função de ter sido fascinado e enfeitiçado por quem ocupa a Presidência. Tudo indica que, com a eleição de Lula, os eleitores pretenderam um "aquecimento" na figura presidencial, como houve em outros tempos, nem sempre com sucesso. Pretenderam libertar o presidente da frieza litúrgica do cargo.


O GOVERNO MISTO
Maria Lúcia de Arruda Aranha
(Do livro: Maquiavel: a lógica da força, Ed. Moderna, 1993, pág. 71 e 73)

... Maquiavel, tal como diversos autores, defende o governo misto como condição de se estabelecer a força da lei capaz de manter a república. Afirma que os legisladores mais sábios sempre escolhem o sistema de governo do qual participam todas as formas já referidas, o que o toma mais sólido e estável: "se o príncipe, os aristocratas e o povo governam em conjunto o Estado, podem com facilidade controlar se mutuamente". Lembra o exemplo de Licurgo cuija legislação tornou Esperta estável por oitocentos anos, de tal forma soube contrabalançar o poder do rei, da aristocracia e do povo. E critica Sólon, legislador de Atenas que não reprimiu "a insolência dos aristocratas e a licença da multidão".

A Roma republicana também teve a virtude do equilíbrio
De início, os cônsules e os senadores representavam a mistura da monarquia e a aristocracia, mas, com o tempo, as desavenças entre patrícios e plebeus fizeram com que aqueles cedessem para não perder tudo devido ao ressentimento do povo. Surgiram então os tribunos da plebe, instituição representativa do governo popular. É Maquiavel quem diz: "A sorte favoreceu Roma de tal modo que, embora tenha passado da monarquia à aristocracia e ao governo popular, seguindo a degradação provocada pelas causas que estudamos, o poder real não cedeu toda a sua autoridade para os aristocratas, nem o poder destes foi todo transferido para o povo. 0 equilíbrio dos três poderes fez, assim, com que nascesse uma república perfeita". Maquiavel reitera essa posição quando nota que, no seu tempo, a república de Veneza e a monarquia inglesa são estáveis porque têm um governo misto. Os governos simples, ao contrário, são "pestíferos" peia breve duração. Por isso, defende a reforma do Estado de Florença em um texto enviado a Leão X, propondo a seguinte divisão:

 um governo vitalício de 65 cidadãos, entre os quais é escolhido o gonfaloneiro;
 um Senado composto de duzentos membros, o Conselho dos Escolhidos;
 um Conselho Popular constituído de seiscentos a mil cidadãos.

O ELOGIO AO CONFLITO
...(H)á algo absolutamente novo na interpretação de Maquiavel e que representa uma verdadeira ruptura, já que, para a tradição, a estabilidade e a paz eram consideradas padrões para avaliar as boas formas de governo.
Ao considerar as forças opostas da aristocracia e do povo, Maquiavel não espera que os conflitos possam desaparecer, mas sim que a relação entre as forças antagônicas seja sempre de equilíbrio tenso.
A posição de Maquiavel foi duramente criticada. Diz o cientista político inglês Quentin Skinner: "Esse elogio à discórdia horrorizou os contemporâneos de Maquiavel. Guicciardini falava por todos eles ao replicar, em suas Considerações sobre os Comentários, que 'elogiar a desunião é como louvar a doença de um enfermo pelas virtudes do remédio a ele aplicado'.
O argumento de Maquiavel ia contra toda a tradição do pensamento republicano de Florença, uma tradição em que a crença de que toda discórdia deve ser banida como sediciosa, ao lado da crença de que toda luta de facção constitui a mais mortal das ameaças à liberdade cívica, havia sido enfatizada desde o fim do século XIII, quando Remigio, Latini, Compagni e sobretudo Dante haviam feito veementes denúncias contra seus concidadãos, aos quais acusavam de colocar em perigo suas liberdades, recusando-se a viver em paz. Assim, insistir no assombroso julgamento segundo o qual - como expressa Maquiavel as desordens de Roma merecem os mais altos elogios era repudiar uma das mais caras idéias do humanismo florentino". A característica inovadora da proposta maquiaveliana está no reconhecimento de que a política se faz a partir da conciliação de interesses divergentes, e o conflito é inerente à atividade social humana, o que supõe a moderna concepção de ordem, não mais hierárquica, mas que resulta do confronto. Para Maquiavel, as divergências entre aristocratas e povo em Roma, longe de provocar a decomposição da república, a fortaleceram. É importante haver mecanismos no Estado por meio dos quais o povo possa expressar seus desejos e realizar seus anseios. Do mesmo modo, devem existir formas de controlar os excessos.
Segundo Norberto Bobbio, pensador italiano contemporâneo, "Maquiavel faz uma afirmativa destinada a ser considerada como uma antecipação da noção moderna de sociedade civil, segundo a qual a condição de saúde dos Estados não reside na harmonia forçada, mas sim na luta, no conflito, no antagonismo (mais tarde, dir-se-á: no processo histórico) - que correspondem à primeira proteção da liberdade".

MULTIDÃO E CONSELHEIROS
(Maquiavel, Lídia Maria Rodrigo, Ed. Vozes, 2002, p. 105 e 106)
Maquiavel elogia ao povo quando diz: "não é sem razão que se compara a voz do povo à voz de Deus: porque vê-se a opinião universal produzir efeitos tão maravilhosos em suas predições, que parece haver nela uma virtù oculta para prever o seu mal e o seu bem."(Discorsi, I, 58: 141)
Mas o povo pode se enganar. "O povo só pode enfrentar o engano a que é induzido pelos homens ou pelos acontecimentos se tiver a sorte de encontrar alguém que seja sábio e confiável para esclarecê-lo sobre o que é bom e o que é mau (Discorsi, I, 53: 134) Sob o domínio das paixões, a massa pode produzir grandes tumultos e desordens; porém, torna-se fácil contê-la, pois, como age sob impulso, basta proteger-se de sua primeira arremetida que os ânimos logo se arrefecem e ela perde a confiança na sua própria força. Para Maquiavel a multidão precisa de conselheiros para distinguir a verdade da aparência enganosa, e de um chefe para dirigi-la ou comandá-la na ação, dada sua incapacidade de autodisciplina e auto-organização. Maquiavel intuiu a necessidade de uma participação ativa do povo na vida político-social, mas está longe de Ter tirado dessa premissas todas as implicações que deveriam logicamente decorrer delas. Mas, com certeza, a explicação mais plausível para as flutuações na avaliação das qualidades populares deve ser buscada nas razões apresentadas pelo próprio autor: na diferença que ele estabelece entre uma multidão solta, sem freio, e a multidão regulada pelas leis, como a romana. (Discorsi, I, 58: 141)